Finalmente tomei coragem e gastei meu suado dinheirinho comprando o clássico brasileiro das faculdades de música: Teoria da Música, de Bohumil Med.
Nunca fui fã. Nos anos de faculdade, sempre que abria o livro, encontrava uma definição que considerava incompleta ou equivocada. Mas, desde que me conheço por gente (há poucos anos), o Sr. Med tem sido a fonte número 1 de teoria musical dos músicos brasileiros. Na edição adquirida (5ª edição) há um selo de “Vade Mecum de Teoria Musical” na capa. Fiquei extremamente cético mas aprendi que é uma expressão sem grandes pretensões, e que representa o que o livro realmente é:
“qualquer livro de referência de uso muito frequente e que instrui o leitor a fazer determinadas tarefas”
– Wikipedia
Tomei a expressão literalmente e “fui junto” (Vade Mecum = vamos juntos). Encontrei, já de início, aquilo que sempre me fez evitar o famoso livro: uma definição incompleta. Porém, desta vez, não é mais o olhar de um jovem universitário procurando respostas as suas perguntas que folheia as páginas do livro, mas um olhar de quem procura a reflexão. E não há nada melhor para estimular uma reflexão do que uma definição incompleta de um termo tão fundamental para a área da música inteira:
“MELODIA – conjunto de sons dispostos em ordem sucessiva (concepção horizontal da música).”
– Med, Bohumil. Teoria da Música.
*expressão em negrito destacada pelo próprio autor.
Minha intenção aqui não é detonar o livro, e muito menos o autor. Justiça seja feita, o universo editorial da música no Brasil não é nada fácil. Compilar uma série de apostilas e transformá-las num livro que iria transformar o estudo da música num país gigante como o nosso, no ano de 1980, é tarefa para poucos. Para um, na realidade.
Além disso, não me lembro de ter visto o mesmo capítulo introdutório em edições anteriores (por favor me corrijam se isso for falso). Nesta 5ª edição, Med define os conceitos de melodia, harmonia, contraponto e ritmo (características da música). Eu, se fosse escrever um livro, começaria por aí também. Normalmente, livros de teoria musical no Brasil já começam a falar sobre as definições das características do som, como fenômeno físico. Tecnicamente correto, mas isso sempre me soou cliché demais e um pouco distante dos motivos que levam alguém a ler um livro desses pela primeira vez.
Mas o que há de errado com essa definição de melodia?
Nada. A definição está correta. Uma melodia sempre será um conjunto de sons ordenados em ordem sucessiva, e ela também representa a concepção horizontal da música. O problema é que esta é uma definição incompleta, a meu ver.
Comecei a pensar em várias melodias por aí, e gostaria que você me acompanhasse nessas análises. O mais interessante desse processo é perceber como um conceito tão fundamental e simples de se reconhecer pode ser tão complicado de se definir em palavras. Cada vez mais penso que a própria definição de melodia não cabe em si mesma. Você conseguiria definir o que é melodia em poucas palavras ou frases?
Conjunto de Sons
Vamos à primeira expressão da definição de Med: “conjunto de sons”. Que tipo de sons? Para ser melodia, esses sons precisam ser de altura definida, como no piano, violão, flauta, trompete, etc.? Ou podem ter alturas indefinidas, como os instrumentos de percussão?
Ao refletir sobre isso, pensei muito num álbum do baterista Ari Hoenig: Inversations, em que toca a melodia de Anthropology (de Charlie Parker) nos tambores (!!!). Ou seja, percussão pode sim tocar melodias. Mas aqui não estamos eliminando a questão das alturas, pois os tambores podem ser afinados de maneira que possamos identificar notas musicais.
É fácil identificar a melodia de quase todos prelúdios do Cravo Bem Temperado de Johann Sebastian Bach, mas será que conseguimos definir a melodia de Apparitions, de György Ligeti? Se levarmos a definição de Med ao pé da letra, Apparitions tem tanta melodia quanto qualquer obra de Bach.
A mim, não me parece que Apparitions tenha melodia, embora reconheço que seja possível esticar o conceito de forma a invalidar minha opinião. Afinal de contas, escute a obra 200 vezes e ela vai lhe parecer muito familiar, talvez até passível de cantoria no banheiro.
Concepção horizontal da música
Quer dizer que a existência ou não de melodia se define de acordo com a memória, e não exclusivamente com os sons? Na minha opinião, é isso o que uma concepção horizontal da música realmente significa.
Ao ouvir um som após o outro, somos obrigados a interpretar a relação entre eles. O som se repete ou é diferente? Se é diferente, muda o quê? Quais características? É nessa análise mais focada que entram em jogo os conceitos das características do som: altura, intensidade, timbre e duração. E tudo isso vai influenciar no nosso poder de identificação dos sons.
Se considerarmos isso, então melodia é qualquer som que ocorre um após o outro? E ela é mais melodia se eu lembro mais desses sons, e menos se me esqueço deles? A definição de melodia tem um limite, mas qual é esse limite?
Disposição em ordem sucessiva
Quero insistir que minha intenção não é desqualificar o trabalho do autor do livro analisado aqui, mas apenas discutir os espaços que sua definição deixou em aberto. Por isso, vamos levar em consideração que a definição utilizada por ele não é tão vaga quanto parece e, considerando todas as reflexões feitas até aqui, não é nada fácil definir o termo melodia em poucas palavras!
O livro atinge seu propósito. A definição é clara e compreende boa parte do que consideramos ser melodia. Por ordem sucessiva, entendemos que os sons seriam seguidos um do outro em relação ao tempo. O termo “horizontal” nos parênteses prova que foi essa a intenção de Med.
De qualquer maneira, não posso deixar de pensar na outra dimensão, ou direção da música: a vertical. O pensamento vertical na música é uma espécie de recorte no tempo. O processo de análise vertical funciona como se pudéssemos empilhar todos os sons que ocorrem num determinado momento, e assim identificar uma espécie de espaço, ou dimensão em que a música ocorre mesmo omitindo o fator tempo. É nesse sentido que pensamos os acordes, como um conjunto de sons que podem ocorrer ao mesmo tempo.
Levando em consideração que cada nota (que seja diferente da outra) é necessariamente mais baixa ou mais alta (em termos de frequência sonora – nem aí nos livramos do tempo!), existe uma “sucessão”, uma ordem separada da sequência determinada pelo tempo. Por isso a definição de Med também poderia ser considerada incompleta, e neste caso até equivocada, pois existiria melodia na ordem sucessiva de sons tocados ao mesmo tempo, sem uma sucessão no tempo.
É de se refletir, mas minha opinião é que aí já estamos exagerando e esticando a própria definição de “sucessão”. A melodia é uma mensagem, um caminho, uma seta que aponta para algum lugar. Imagine uma música formada por vários sons sobrepostos, mas tocados apenas uma vez, e depois disso, silêncio. A não ser que consideremos o silêncio como parte possível da melodia, nada feito.
Silêncio
Já que tocamos no assunto… e o silêncio?
John Cage e diversos compositores de trilhas sonoras já nos demonstraram o poder expressivo do silêncio. Além disso, ele ocorre ao longo do tempo. Deixando de lado definições físicas da ausência de som (pois elas nos deixam com a conclusão de que é impossível experienciar o silêncio), vamos considerar o silêncio aqui como definição coloquial: ausência de sons altamente perceptíveis.
Esse tipo de silêncio ocorre entre sons, e normalmente é um fator muito importante para a percepção do ritmo e da sensação do tempo da melodia (aqui definida como alturas definidas). Seria justo excluir o silêncio – a pausa – da definição de melodia? Mesmo que não hajam espaços perceptíveis entre um som e outro, o silêncio certamente começa antes e termina depois de uma melodia. E essa característica é que dá à melodia a sensação de um caminho no tempo.
Como definir melodia, então?
Mesmo depois das reflexões acima, parece que saímos com mais perguntas que respostas sobre o problema enfrentado por Med e todos os outros teoristas da música:
- A relação da melodia com as alturas sonoras definidas certamente é íntima, mas será que não existem outras possibilidades?
- A concepção horizontal da música é sempre representada por uma melodia, mas será que não pode ser representada por outros elementos?
- Todos os sons dispostos em ordem sucessiva formam uma melodia?
- O silêncio é parte necessária de uma melodia ou apenas uma possibilidade?
Independentemente das respostas, a reflexão sobre este assunto é de importância fundamental para a criação e a apreciação musical. Muito provavelmente as definições estão mudando ao longo da história, sendo questionadas por compositores e ouvintes do mundo todo. E você, saberia definir a palavra “melodia”?